A masmorra das palavras

Uma confissão escrita ao amigo que se foi, cuja ausência abriu um buraco de culpa e saudade.

Marcus Almeida Machado

9/16/20252 min read

Meu amigo, quanto tempo. Já se passaram mais de duas décadas, e ainda assim sua partida me soa como se tivesse acontecido ontem. Foram poucos anos de convivência, mas nossa amizade foi verdadeira, leve, cheia de harmonia e sinceridade.

Sabe, amigo, preciso te contar algo que me persegue há anos: você se foi, e eu não pude me despedir. Naquele dia, eu não fazia ideia de que sua partida já estava acontecendo, e perdi o último abraço. Guardei essa dor comigo até hoje, e agora finalmente posso colocar em palavras.

Nos últimos dias, você voltou a aparecer nas minhas memórias: vivo, sorridente, como sempre foi. Fiquei surpreso quando senti que podia finalmente trocar uma ideia com você, depois de tantos anos. Essa chance de conversar é preciosa, porque ainda carrego coisas que preciso esclarecer.

No dia da sua partida, eu faltei à escola. Todos foram se despedir, mas eu não estive lá. Só fiquei sabendo tarde demais. Na hora do almoço, meu pai chegou e me contou sobre o velório e o enterro, mas acrescentou, com uma severidade que parecia um golpe:

"Você não foi no velório do seu amigo?"

Essas palavras caíram sobre mim como um piano nas costas — pesadas, implacáveis, e ecoam na minha mente até hoje.

Senti-me triste, perdido, culpado. Guardei esse sentimento em um quarto escuro dentro do meu coração, sem jamais tocá-lo. Cada encontro com alguém da sua família me preenchia de vergonha, e minha mente se apertava em uma tortura silenciosa:


"Você não foi no velório do seu amigo?" — e de novo, como um eco interminável.

Eu atravessava a rua para me esconder, carregando a vergonha e a culpa como sombra constante. Que difícil viver sem ter me despedido de você. E, ao mesmo tempo, lembranças felizes me invadiam: festas de aniversário, tardes brincando na sua casa… Que tempo bom! Pena que tudo isso parecia ter ficado em segundo plano diante daquele dia aterrorizante.

No sonho, eu entrava em sua casa e via cada detalhe: seu cachorro, o aquário, o teclado. Caminhava até a cozinha, observava a panela elétrica de arroz e seguia até a varanda. Você estava na balança, brincando, e, ao me ver, levantou-se para conversar.

Com lágrimas nos olhos, desabafei o piano que carreguei por toda a vida:

"Chininha, eu não sabia… me perdoa… eu faltei na escola, e eu não sabia…"

Você me escutava, atento e sorridente. Estendeu a mão, me cumprimentou e me abraçou — um abraço forte, de amigo. Depois, com as mãos nos meus ombros, olhou nos meus olhos e disse palavras que me libertaram da prisão em que fui mantido por todos esses anos:

"Estou muito feliz e grato pela sua visita. Está tudo bem. Sempre esteve tudo bem."

Quando acordei, meus olhos relutaram em abrir. A chuva caía lá fora, seu som entrando pelos meus ouvidos. Eu não queria deixar aquele sonho. Meu coração estava leve, e a mente parecia finalmente descansar das memórias dolorosas.

Caminhei até a janela. A chuva continuava linda, como se o céu chorasse de alegria. Perdi-me no tempo, observando as nuvens se desfazerem em água.

E, por um instante, a frase retornou à minha mente:

"Você não foi no velório do seu amigo?"

Mas, com um sorriso no rosto e o coração leve, gritei em voz alta, para que todos os vizinhos ouvissem:

— Está tudo bem. Sempre esteve tudo bem!